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quarta-feira, 17 de março de 2010

A Fuga


No dia 5 de Fevereiro de 1975 o meu pai e irmãs deslocaram-se até à cidade da Gabéla e só eu e a minha mãe nos encontrávamos na fazenda.
Por volta das 20 horas, ainda tínhamos a loja comercial aberta com alguns clientes. Entraram cinco homens envergando a farda de tropa com os dísticos do MPLA e, de arma em punho e os cinturões cheios de balas e algumas granadas penduradas, aproximaram-se do balcão e perguntaram à minha mãe se tínhamos armas. Ela respondeu que tínhamos uma caçadeira. Eles pediram-lhe que a fosse buscar e lha entregasse. Pedido ao qual ela acedeu.
Beberam um copo e perguntaram quanto era. A minha mãe respondeu que era oferta da casa. Deram-nos as “boas noites” e seguiram. Nós transpirávamos de medo.
Passados mais ou menos dois meses, voltaram a passar por lá e entregaram-nos a arma. Nunca soubemos o que os levou a terem aquela atitude. Na penúltima semana de Junho de 1975 os habitantes lá da Sanzala (Aldeia), aqueles que tinham patrões, não foram trabalhar e passaram uns dias fora da Sanzala, presumo que dentro da selva. Uns dias antes, naquela Sanzala apareciam Jipes com homens fardados e armados das 3 fracções combatentes (UNITA, MPLA e FNLA). Dali em diante, eu continuava a conviver com os meus amigos mas, notava que os pais deles nos olhavam com uma certa diferença. Os dias foram passando e no dia 20 de Julho de 1975, na cidade da Gabela os partidos entram em confrontos e a população organizou uma caravana, com cerca de 400 veículos, acompanhados por militares portugueses e da UNITA, que com veículos e aviação fizeram escolta até a cidade de Nova Lisboa (actualmente designada de Huambo).
Nós vivíamos no mato a cinquenta quilómetros da cidade.
No dia 19, pelas 23 horas, Jorge Loureiro Morais, que namorava com a minha irmã Manuela, acompanhado de um colega, encheram-se de coragem e atravessaram o deserto, por estradas de terra batida e foram resgatar-nos com uma carrinha de marca Peugeot, de cinco lugares. Metemos à pressa uma mala com algumas roupas no porta - bagagens e fugimos para uma fazenda da CAOP, que ficava a uns oito quilómetros. Ali se juntaram outros.
Os meus pais, ao aperceberem-se que o caso era mais grave ainda tentaram voltar a casa com o intuito de trazerem mais algumas coisas, inclusive a caçadeira e a minha colecção de discos de vinil, mas ao chegarem perto de casa depararam-se com um bando de pessoas que não os deixaram aproximar, e de dentro do grupo saiu um homem que era bastante nosso amigo e, que infelizmente, também tinha um filho deficiente. Dirigiu-se à minha mãe e segredou-lhe: -Minha senhora vá embora agora que eles estão dispostos a matar se avançarem.
Os meus pais não tiveram outra hipótese senão regressar.
No dia seguinte partimos, por estrada de terra batida em desertos de savanas, com poucos arbustos, onde o perigo de encontrar o inimigo atacante era iminente. Percorridos uns dez quilómetros, a estrada passava no meio de uma sanzala (aldeia de negros e onde viviam também alguns brancos, no Pombuige). Quando íamos a chegar vimos um grande grupo de homens, vestidos só com calções, na cabeça uma fita com as Siglas do MPLA, catanas, flechas e algumas espingardas. O chefe deles fez-nos parar, mas ao dirigir-se a nós reconheceu o meu cunhado Henrique, conheciam-se das caçadas. Cumprimentaram-se, com um aperto de mão e com um abraço. Dirigiu-se à multidão e disse-lhes para nos deixarem passar, que éramos conhecidos e amigos. Seguimos e passados uns setenta quilómetros, chegámos à estrada asfaltada que ligava Luanda a Nova Lisboa. Nesse lugar, chamado “Muquitixe”, no meio do deserto angolano, havia um restaurante e umas bombas de combustível onde os camionistas paravam normalmente. Ficava a uma distância de trezentos quilómetros da capital e a uns quinhentos de Nova Lisboa. Estacionámos ali os sete veículos e fomos perguntar aos donos se haveria hipótese de nos arranjarem algo para comer, uma vez que já passava das 23 horas.
Eles disseram que só nos poderiam arranjar bifes de vaca com batatas fritas. Acabámos de jantar, saímos e pensámos em pernoitar ali no parque, dentro dos automóveis. Passado meia hora, quando já quase todos pegavam no sono, fomos surpreendidos por um Jeep Land Rover que transportava 23 homens fardados e armados com armas de guerra. Saltaram do Jeep, dispararam umas rajadas de HK 45 e cercaram-nos os carros. Eu notei logo na farda e pelo crachá que estava na boina e na porta divisas, que eram militares da UNITA, saudei-os com um: -Boa noite irmão. Ele cumprimentou-me e perguntou-me se éramos irmãos.
Eu respondi-lhe que era irmão e, levantando o tapete do automóvel tirei o meu cartão de militante da UNITA. Ele virou-se para o resto dos companheiros e disse: -Tenham calma que estes são nossos apoiantes, este senhor é nosso militante.
Então, depois de conversarem connosco, aconselharam-nos a não pernoitar ali visto que nessa tarde tinha havido, ali, confrontos entre a UNITA e o MPLA. Nos arredores estavam muitos mortos e havia alguns escondidos com sede de matar. Também nos aconselharam a seguir para Nova Lisboa porque para o lado de Luanda poderíamos correr perigo. Ainda nesse lugar, enquanto conversávamos e trocávamos impressões com esses militares, que considerávamos nossos protectores, apareceu, vindo do escuro não se sabe de onde, um jovem, negro, que aparentava ter entre 25 e 30 anos, não me apercebi se estava embriagado ou se era algum dos que esteve envolvido nos tais confrontos que decorreram naquela zona. Dirigindo-se a um dos militares cumprimentou-o, estendeu-lhe a mão e disse:
-Boa noite camaradas – O militar, da UNITA, ao ouvir a palavra camarada, agarrou-lhe nos colarinhos, arrastou-o até junto do Jeep e de seguida espetou-lhe um pontapé nos testículos e disse: –Volta lá a dizer isso!
O Jovem repetiu, “camarada” e o militar levantou-o, encostou-o ao Jeep, espetou-lhe a baioneta na barriga e logo de seguida deu-lhe um tiro.
Era assim, os da UNITA não admitiam a palavra, “camarada”, pois ela era sinónimo de comunismo, União Soviética e Cuba de Fidél de Castro.
Voltámos para trás, uns sete quilómetros e fomos pedir aos donos de uma fazenda que nos arranjassem ali um sítio para dormir.
No dia seguinte partimos, e ao despedir-nos dos donos da fazenda, eles com as lágrimas nos olhos disseram-nos: - Hoje são vocês, amanhã seremos nós! - Abraçámo-nos e seguimos rumo à vila da Quibala para lá esperarmos pela caravana que vinha da Gabéla.
Ao chegarmos à Quibala, ficámos aterrorizados com o que encontramos. Logo à entrada, vimos as casas dos negros todas queimadas, algumas ainda a deitar fumo. Havia, cães, porcos e pessoas mortas junto ao que restava dessas casas. Entrámos na pequena vila. As bombas de gasolina tinham desaparecido. No chão havia um grande buraco provocado por morteiros 81, lojas e casas rebentadas por morteiros e balas. Já não havia nada a funcionar e a população desaparecera. Ainda tentámos comprar pão mas nada havia. A minha mãe, irmãs e outras senhoras que nos acompanhavam, tentaram ir atrás dum armazém, fazer as necessidades fisiológicas, mas fugiram para junto de nós apavoradas com o que tinham encontrado: centenas de mortos, de raça negra, ali estavam amontoadas uns por cima de outros, uns à civil, outros envergando fardas de militares dos três partidos.
Ficámos ali, até as 16 horas, quando apareceram aviões, que faziam raids por cima da caravana de quatrocentos veículos. À frente traziam uma Berlie com cerca de quarenta militares da UNITA de arma em punho viradas para as bermas da estrada e a bandeira do galo negro ao alto. A meio dessa caravana outra Berlie com tropa de raça branca e do governo de Portugal, (eu prefiro dizer assim do que dizer tropa portuguesa, porque nessa altura tanto os militares dos três partidos como a população em geral, tinham o Bilhete de Identidade português), no fim da caravana vinha uma outra Berlie, ou Hunimog, já não me recorda a marca, com outros tantos militares do Galo Negro. Aproximámo-nos, da caravana, encaixando-nos e lá seguimos. Logo nos primeiros sete quilómetros, a caravana parou e os jactos (MIG) da força aérea, faziam raids por cima de toda a coluna. Durou, mais ou menos, meia hora, ao fim da qual começámos, novamente em movimento e depois de percorrermos dois quilómetros, deparámo-nos com dezenas de corpos mortos a escorrer sangue, na berma da estrada, alguns ainda com armas de lado ou nas mãos e vestidos com fardas do MPLA. O Jorge, meu futuro cunhado, que conduzia a carrinha, desatou a chorar, perdendo a capacidade de continuar a conduzir, entregando o carro ao colega. Lamentando disse: -Andei na tropa e nunca vi nada disto.
Já por essas 22 horas, noite dentro, isolados dos restantes automóveis, na noite escura, fomos mandados parar na entrada da ponte do Alto-Huama. Logo se acercaram de nós meia dúzia de homens armados com armas russas “Calaachenicóves”, envergando a farda do MPLA. Revistaram-nos o carro, conversaram uns com os outros, enquanto eu tremia e sentia a garganta seca com o medo que levantassem o tapete do meu lado, onde eu guardava o meu cartão de militante da UNITA. Se isso acontecesse seria a nossa morte!
Apontaram-nos as armas mas decidiram dar-nos ordem para seguir.
Depois de quatrocentos quilómetros com o coração a bater a 150 pulsações, finalmente chegámos a Nova Lisboa (Huambo).

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